A Propaganda e as crianças Publicitários passam a vida toda queimando neurônios para encontrar a melhor forma de influenciar as pessoas a comprar, consumir, desejar, valorizar acima de todas as coisas a mercadoria que anunciam. Mas quando algum anúncio é taxado por dar mau exemplo aos consumidores em potencial, os publicitários são os primeiros a jurar que a propaganda não influencia o comportamento de ninguém. Se não influencia, por que é que as empresas pagam caríssimo por uma inserção de comercial no horário nobre da televisão? Por que as marcas invadem a paisagem urbana com out-doors cada vez mais vistosos, mais altos, mais iluminados, que ninguém consegue ignorar? Por que os jornais vendem as primeiras páginas de seus cadernos para anunciar grifes da moda, deixando os artigos que queremos ler para as páginas de menor visibilidade? Por que os políticos dependem cada vez mais dos marqueteiros não só para se eleger, mas para conseguir governar? A matéria de capa da revista "IstoÉ" recente trata da polêmica em torno dos efeitos da propaganda de cerveja entre as crianças e os adolescentes: o apelo excessivo ao consumo de cerveja, sempre associado a um estilo de vida jovem e descontraído, estaria criando uma geração de alcoólatras precoces? Não sei se é certo ou errado tomar um pouco de cerveja aos 13, aos 15 ou aos 18. Talvez não faça mal a ninguém beber moderadamente; nem mesmo às crianças. No inverno escocês, crianças de escola primária tomam um grogue com whisky de manhã, antes de sair no frio para ir às aulas. Na França, até os pequenos tomam vinho nas reuniões da família. Não faz mal algum. O que faz mal é beber demais, ou adquirir o hábito de beber freqüentemente. Se prejudica a saúde dos adultos, imaginem das crianças. O presidente do Sindicato dos Produtores de Cerveja disse à reportagem da "IstoÉ" que quem introduz o álcool na vida das crianças são os pais tolerantes, e que a propaganda não faz nenhuma criança começar a beber. É óbvio: quem compra a cerveja na casa em que a criança vive são os adultos, não ela. Quem autoriza o primeiro golinho numa festa de família são os pais, também. Mas quem associa o álcool a tudo o que há de melhor nessa vida? Quem estimula o hábito, quem garante que a festa só fica boa com Vodka Ice, que a sexta-feira só vale a pena com Kaiser, que assistir futebol sem uma Brahma é programa de índio? Quem faz o adolescente acreditar que a inclusão dele no grupo depende da bebida, do cigarro e do carrão que ele vai querer pegar escondido do pai assim que tiver uma oportunidade? Alguém duvida que, pelo menos no meio urbano, a publicidade é fator deter- minante na formação das crianças e dos jovens? Os pais podem até tentar dar bons exemplos, negociar, vetar bebidas alcoólicas nas festinhas dos filhos de onze anos. Mas vão se sentir impotentes diante da turba feliz que grita "Experimenta! Experimenta!", cinqüenta vezes por dia, na cara de seus rebentos. Vão se sentir ultrapassados pelo ambiente emocional criado pelos excessos da publicidade no Brasil, onde nenhuma regulamentação impede que anúncios de carro convoquem os jovens a correr acima dos limites legais de velocidade, nem que a ênfase das propagandas de aparelhos de som recaia sobre a capacidade de seu produto estourar os tímpanos e tirar o sono dos vizinhos. A publicidade pauta a "atitude jovem" para o País inteiro; quem quiser se sentir incluído e valorizado em seu grupo de referência sabe que a receita é encher a cara de álcool , fumar, delirar, enlouquecer. Tomadas uma a uma, talvez essas peças de propaganda não tenham grande influência sobre o consumidor. Não são as mensagens isoladas a favor da marca tal e tal, mas a grande e única mensagem que atravessa todos os anúncios, que cria o caldo de cultura onde crescem as crianças e adolescentes brasileiros. Essa mensagem é, com unanimidade, uma mensa gem de gozo. Ela "educa" mais que a escola e a família; é mais onipresente na vida das crianças do que os pais e professores. O adolescente talvez não seja o consumidor mais visado pelos fabricantes de bebidas alcoólicas (será que não?), mas tornou-se o símbolo do gozo sem limites que a publicidade estimula. O tempo todo ele se depara com imagens publicitárias utilizando modelos de sua geração, em clima de eterna farra; o tempo todo é convidado a se identificar com essa imagem. Dizer que essa exuberante oferta imaginária não produz identificações, é ingenuidade ou má fé. Os repórteres de "IstoÉ" relatam o caso de um menino de doze anos que se embriagou em uma festa, e concluem que "certamente a influência dos amigos foi mais importante para convencer (o menino) a tomar seu primeiro porre do que a sexualidade das modelos que atuam nas propagandas de cerveja". Mas não perguntam por que, em uma festinha de pré-adolescentes, a atitude mais valorizada, mais "adulta", foi encher a cara de cerveja e vodka. Dos 544 adolescentes investigados por uma pesquisa norte-americana, só 8% afirmam que a maior fonte de influências em sua vida vem da publicidade, contra 73% que dizem vir de seus pais. Só que a influência da publicidade é muito mais inconsciente do que a das pessoas com quem nos relacionamos diretamente. Mal prestamos atenção nela; mensagens publicitárias, hoje, fazem parte do ar que respiramos. A repetição e a absoluta coerência das mensagens publicitárias participam majoritariamente do ambiente ideológico em que vivemos. As marcas divergem, mas o apelo ao gozo sem limites é sempre o mesmo. Assim, muito mais do que a preferência por um ou outro produto, a publicidade delineia o horizonte para nossos desejos, de forma tão eficiente que acreditamos na autenticidade deles. Felizmente, contrariando o discurso totalitário da publicidade, há tentativas de se estipular limites éticos a ele. O Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária (Conar) fez algumas alterações em seu código de ética no que se refere à propaganda de cervejas; aconselham que atores menores e 25 anos não apareçam nos anúncios, que se evite a associação entre bebida e erotismo, que não se apresentem imagens de pessoas ingerindo o produto, que não se utilizem recursos gráficos "pertencentes ao universo infantil, tais como animais 'humanizados', bonecos ou animações". O Ministro da Saúde, Humberto Costa, vem estudando a possibilidade de se proibir a veiculação de anúncios de cerveja na televisão entre as seis da manhã e as dez da noite. Talvez não sejam grandes mudanças, mas o precedente é importante. A regulamentação ética da publicidade, afinal, será sempre contrária a seus próprios interesses. Só uma pressão considerável da sociedade é capaz de mostrar que a educação, a cidadania, o respeito ao outro, a solidariedade, nos interessam tanto ou mais do que o gozo consumista para o qual todos são chamados, mas poucos os escolhidos |